quinta-feira, 13 de maio de 2010

A mentira sistémica como estratégia...

A esclarecedora carta de uma reclusa
de Santa Cruz do Bispo

«Cecília de Menezes
Ala 3 – piso 1 – n.º 7
Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo
Apartado 5046
Rua Gonçalves Zarco
4456-901 Perafita ( Matosinhos )

Assunto: vossa ref.ª, processo R 59/2010

Ex.mo Senhor
Dr. Pedro de Lima Gonçalves
Inspector-Geral dos Serviços de Justiça

Cumprimentando-o, dirijo-me com a finalidade de acusar a resposta da reclamação apresentada pela pela ACED e que deu origem ao processo acima referido, e esclarecer que no meu ponto de vista, - “maus tratos são todos os actos e regras que atentem contra minha saúde física e mental.”

Também quero manifestar minha indignação pelas informações dadas pela direcção do E. P., e que certamente se deve ao facto da direcção ter sido induzida em erro, porque minha confiança pela direcção e serviços jurídicos é absoluta, e daí a minha indignação com a falta de verdade nas informações dadas a vossa excelência; senão vejamos:

-os serviços clínicos têm sim conhecimento de todos os casos relatados pela ACED, são queixas que sempre fiz desde 2008, nas consultas de psicologia, e outras;

-a senhora dra. Maria Osório, directora dos serviços clínicos também está informada sobre problemas de algemas, e sobre o calçado, e todos os funcionários profissionais de enfermagem sabem de todas as minhas queixas, várias vezes me desloquei aos serviços por esse motivo, e se não registaram minhas queixas, isso já será então um problema ainda mais grave, pois por causa do calçado fiquei 45 dias sem me alimentar;

-nos atendimentos concedidos pelo senhor director na data de 26 de Janeiro de 2010, o assunto foi precisamente o calçado, algemas e pertences pessoais, e o cartão virtual; e fiquei portanto aguardando respostas, uma vez que o senhor director se encontrava na direcção, havia pouco mais de uma semana e não estava ainda dentro das deficiências democráticas existentes no E. P., e daí que eu tivesse ficado esperando pelas respostas dos problemas expostos; como não chegaram, cansei de esperar, e mais uma vez me sentindo abandonada com a falta de respostas, decidi pedir ajuda à ACED, e outras entidades judiciais;

-no dia 06 de Abril, fui tratar de outros assuntos, e não deu tempo para falar de mais nada, porque a disponibilidade do senhor director também é muito reduzida, e por isso tentei ser breve, também não faria sentido repetir o que já havia falado a 26 de Janeiro, até porque já tinha pedido apoio no exterior.

Repito: a direcção, e todos os dirigentes do E. P., sabem de minhas queixas, não faria nunca queixas baseadas em mentiras, que não pudesse provar; não me queixo por prazer, me queixo por sofrimento, e desespero, com falta de oxigénio humano, atenção, enfim,… Não fujo dos problemas, nem me conformo com eles. Fico muito triste pelas informações prestadas, por não corresponderem à verdade, e também porque são mais algumas nódoas para o E. P.

E repito: maus tratos são, “no meu ponto de vista” todos os atentados à minha auto-estima, à integridade física, e mental.

É verdade que me foram oferecidos 5 pares de sapatos, que de facto eu recusei, e isso porque nenhum deles eram o número que calço, e também porque não reuniam as condições ortopédicas que necessito usar para minha segurança física e psicológica, uma vez que não posso usar salto inferior a 8 cm; e a direcção sabe disso; os serviços clínicos também; se duvidavam, pois não deveriam ter-me deixado descalça, sem antes me mandarem a um ortopedista para confirmarem a veracidade das minhas queixas.

Não é verdade que eu tenha optado por usar chinelos, até porque não usei, nem estou usando chinelos, o que na verdade eu estou usando desde 4 de Agosto de 2009, é uma garrafa de lixívia enrolada em panos, que adaptei à altura que necessito usar, e que alguns profissionais do E. P. ironicamente chamam de sapatos de artesanato. Ponho meus ditos chinelos, e os meus pés feridos, “e marcados pela situação desumana que venho vivendo” à disposição de vossa excelência, para ter oportunidade de confirmar a veracidade das minhas queixas, e a falta de verdade das informações que lhe foram fornecidas. Aliás, minha situação prisional desde que cheguei a Portugal, é já conhecida no mundo inteiro. Em Tires não tive melhor sorte, e já vim para este E. P. com um rótulo que me tem marcado profundamente. A minha diferença incomoda, não é compreendida.

Em deslocações ao exterior permitem-me usar vestuário, pois é! … no dia 1 de Fevereiro de 2010 fui aos serviços do Ministério Público de Matosinhos, e acabei por levar os ditos chinelos, que fiz questão de lá os mostrar, e levei uns “jeans” bastante velhas, porque às 7:30 da manhã vieram, me avisaram que eu ia sair, para estar pronta às 8:15, e só às 8:16 me vieram entregar uns sacos plásticos com umas calças de pele “que estavam na arrecadação da chefia desde 11 de Julho de 2008”, cheias de humidade, bolor, e um cheiro nauseante. “Cheguei a ficar bastante indisposta”, sofro de alergia, e azia, a tudo quanto é falta de higiene. Não se encontravam portanto em condições para eu as vestir, e na visita ao senhor director a 26 de Janeiro, eu pedi para que essa roupa de saída ao exterior a 1 de Fevereiro, me fosse permitida trazer para a cela para poder tratar da higiene que precisava, mas isso não aconteceu, e acabei por ir para um tribunal de forma humilhante e desumana – mal tratada - . Há valores que não se perdem nunca, e actos grosseiros eu não suporto. E vindas de entidade do Estado, têm responsabilidade acrescida.

A utilização de algemas nas deslocações ao exterior em transporte em viatura, pois são um atentado à minha segurança física e psicológica, “e quando do acidente sofrido, se viéssemos algemadas, certamente o estrago teria sido ainda maior”, por sofrer de pânico a algemas, e agora também, à carrinha celular, facto que nunca foi considerado nos serviços clínicos; um dia na consulta eu perguntei à dra. Adriana, psiquiatra, se ela assumia a responsabilidade de minha morte numa viagem, e ela me falou que sim ! … perante esta resposta, palavras para quê ? “É uma resposta que se enquadra no crime por negligência que é, quando alguém perde a vida em consequência de…”

É verdade que no dia 4 de Abril um dos meus amigos “advogados” me enviou uma pessoa para levar dois sacos com alguns pertences que se encontravam na arrecadação da chefia, já sem condições de poderem ser um dia utilizados, que apenas servem de prova, para que a culpa não vá morrer solteira. Alguns sapatos acabei deitando fora na arrecadação, porque estavam também danificados pela humidade. A televisão estava partida do acidente, também ficou no lixo, bem como muitas outras coisas que terão o mesmo fim. Perdi meus óculos graduados no acidente, e até hoje a Direcção Geral [ dos Serv. Pris. ] não manifestou disponibilidade para resolver o problema. Sofro de astigmatismo, e estou com graves problemas de visão. E concluí que vandalismo com pertences dos outros ! … é legal em Portugal.

Também estou sujeita ao regime de incomunicabilidade absoluta com o Brasil, “onde tenho residência, família, amigos, e assuntos pessoais e profissionais a tratar”. Uma medida que se aplica aos detidos em prisão preventiva por autoridade competente.

Estou indignada com a facilidade com que se determina o arquivamento de uma reclamação com base em informações que não correspondem à verdade dos factos; é como atrás referi, acredito que a direcção foi induzida ao erro, pois tenho grande admiração, confiança e respeito pela direcção do E. P., e não me conformo com as informações dadas. Não vou dar por encerrado, situações que me deixam marcas irreversíveis, que são nódoas não só para o E. P., como também para um país que se diz democrático.

Acrescento ainda que depois da nova direcção houve melhorias bastante notórias no E. P., o que me deixa bastante tranquila. Na verdade, nunca tive apoio dos serviços de educação, apesar de várias vezes o ter solicitado. “Sinceramente não entendo qual a missão destes serviços no E. P. “

Tenho tido uma reclusão bastante agitada, foram 18 meses num dos piores presídios do Rio de Janeiro, mais 2 anos e 4 meses em Tires, onde ia perdendo a vida, e cheguei a pedir transferência para o Rio de Janeiro, mas ao invés disso, vim para este E. P., sofrendo o acidente na carrinha que me deixou ainda mais fragilizada do que já estava, e após o acidente não tive o apoio que precisava ter, ficando cada vez mais fragilizada, abandonada, discriminada, entre outras situações que jamais esquecerei. Sou uma pessoa solitária, mas detesto a solidão.

Na oportunidade, apresento meus protestos de consideração. Atenciosamente,

Maria Cecília Gonçalves Brandão de Menezes

Perafita, 01 de Maio de 2010.»

Acompanhar este caso em:
http://iscte.pt/~apad/ACED/
Foto: DR